MARGUERITE DE MIOMANDRE-LIÉGEOIS

Conheci Marguerite de Miomandre há mais de 20 anos, era ela presidente da UMEM.
A memória que tenho dela é a de uma velha senhora, vitoriana e distante e, ao mesmo tempo, alegre, participativa e apaixonada.
Senhora de grande cultura, fluente em várias línguas e com uma grande capacidade de improviso poético ou literário, quando, quase instantaneamente, era capaz de fazer uma tradução quase fiel dum texto apresentado numa língua não apreensível pela maioria dos presentes. Não só traduzia a forma como a essência.
 
Viajava sempre acompanhada da sua dama de companhia e mantinha uma discreta distância que umas vezes fazia por encobrir e outras por tornar evidente.
Por duas vezes não vem a Portugal. A primeira, durante o congresso da Curia, esteve impossibilitada de comparecer porque as datas do congresso e da estreia de uma das suas peças teatrais num dos teatros de Bruxelas, coincidiram. Recebi dela, então, uma carta fraterna e simpática explicando o porquê da forçada ausência e manifestando o desagrado de não poder vir e não retornar a um país de que gostava e lhe dizia muito.
Agora, segunda vez, por mais forçada e triste razão – porque a doença a impede de vir e teima ferozmente em a afastar de nós.
 
Marguerite de Miomandre-Liégeois, é uma personagem. Aristocrata, culta, com capacidade de liderança e de afirmação, mas fugindo a colaborar em cenas menos canónicas, de acordo com o seu código de comportamento. Só isso pode explicar, em meu entendimento, o seu afastamento da presidência da UMEM, quando se levantaram ondas alterosas no mar até aí tranquilo do congresso de Barcelona e a sua fúria, por vezes surda e outras não tanto, a levaram a abandonar a presidência, dando lugar a esse outro personagem que dava pelo nome de Bernard Schmitt, que com coragem aceitou o cargo e conduziu os destinos da UMEM por largos anos, com superior categoria e agrado geral.

Marguerite – daqui, de Portugal – todos os membros da UMEM presentes neste congresso, te enviam um fraterno e colectivo abraço e desejam que a tua luta te leve mais uma vez a vencer o Mal e a fazeres ganhar o Bem, como toda a vida fizeste.
 
Carlos Vieira Reis
 
 

UMA VINGANÇA EM MALVA

(Texto de Marguerite)

Levantei-me, neste domingo de Junho, a inspeccionar o céu. O seu aspectojustifica uma curta oração: “Meu Deus, fazei que não chova”. Seguramente, seriaabsurdo que Deus nos enviasse chuva, esta manhã. A sua procissião não saíria.

Mas sabendo bem que os desígnios de Deus são muitas vezes impenetráveis, nãojulgo inútil lembrar-Lhe que hoje é a sua festa, e que eu tenho nela um papel: ser uma santa, anónima, eu sei, mas gloriosamente vestida de cetim bordado a ouro.

O que é uma coisa muito diferente da pequena túnica branca que vesti o anopassado, sob uma grinalda de rosas, no grupo deslavado e pateta dos Santos Inocentes.

Este ano, terei a honra de figurar na teoria das santas mulheres encarregadas de sustentar a cauda do vestido da Virgem Maria. Foi o Senhor Vigário, da Patriarcal, que mo prometeu no último domingo. Depois do pequeno almoço que tomei sem qualquer apetite, apressei-me a ir para o Círculo Católico onde oficia a respeitável senhorita Edith, que usa uma fita preta ao pescoço e tem um peito opulento, mas muito cristãmente comprimido numa robusta cinta. É lá que nos aguardam os nossos trajes. Algumas jovens, grandes que se fartavam (penso que deviam ter pelo menos quinze anos) encarregaravam-se de nos conduzir ao vestiário. A senhorita Edith exibe-se ali como se fosse Deus o Pai no julgamento final, com o senhor Vigário como coadjutor. Dedo indicador imperialmente espetado, vai chamando cada crente e designa-lhe um canto da sala. Segundo a direcção do seu dedo, haverá os eleitos e os reprovados. Porque à sua direita mostram-se os cetins delicados, os véus bordados, os veludos brilhantes. À sua esquerda, pelo contrário, pobres roupas sem nome empilham-se sobre uma mesa: sarjas envelhecidas, lãs puídas, deprimentes flanelas. São as vestes que se deitam fora agora para vestir os santos de condição modesta que ganharam o seu céu com o suor dos seus rostos. O pior para eles e para os pequenos deserdados que ficam reduzidos a vestir estas tristes indumentárias. Eu, amo a santidade, mas prefiro-a vestida de rosa ou de lilás e debruada a ouro fino, semelhantes a estas preciosas vestes para as quais estendo já uma mão ávida. Vejo um vestido em malva suave, duma doçura de arco-íris, exactamente com a minha medida. Vão dar-mo … vão dar-mo, porque chegou agora a minha vez.

Horror ! Num gesto peremptório, a senhorita Edith acaba com o meu arrebatamento e manda-me para as trevas profundas. E antes de ter podido compreender o que me estava a acontecer, encontrei-me enfiada numa saia informe e numa blusa desbotada, calçada com uns grossos socos e penteada duma maneira detestável. Parece que estas piedosas vestes eram as de Bemadette de Lourdes e que me ficavam uma maravilha.

O desespero deu-me uma coragem incrível. De uma forma resoluta, afrontei a dona da casa e, numa voz firme disse-lhe: “Mademoiselle”, “tinham-me prometido que este ano, eu faria de uma santa mulher “

A imponente e impositiva criatura olhou-me durante algum tempo, e depois retorquiu com suavidade: “Mas, minha pequenina, Bemadette Soubirous é também uma grande santa. “

Deixe-se de conversas! Uma simples pastora será o mesmo que uma Isabel de Hungria que foi rainha ! Por quem me toma ela ? A mim não me venham com essas histórias. Eu sei bem o que são categorias sociais, tanto na terra como nos céus. Sei perfeitamente que há sete classes de anjos no Paraíso e que, só na nossa família, contamos com as boas famílias e com as pobres gentes. As boas famílias têm na igreja genuflexórios de veludo vermelho e, nas procissões, as suas filhas fazem o papel da Santa-Virgem, ou a maioria das vezes, das Santas-Virgens, porque elas são várias, o que é muito bom para a paz da cidade. Há a Maria Medianeira, a Nossa-Senhora do Perpétuo Socorro, a Nossa-Senhora do Bom Conselho e mesmo a Nossa-Senhora das Dores. Esta deve ser reservada às jovens filhas de boas famílias que tenham tido desgostos. A senhorita Edith parece que é uma delas. Deve ser por isso que ela traz sempre ao pescoço aquela fita preta.

Eu ainda não tive desgostos, o que me deixa desolada pois doutra forma estaria logo à partida entre as chamadas pessoas distintas o que para mim não seria indiferente. É que o meu avô sempre vestiu fato de trabalho, o que o relegou para o nível da boa gente, que é o mesmo que pobre gente. É verdade que tenho parentes de boas famílias. O que não é o mesmo que serem uma ilustre família. As famílias ilustres têm no seu nome um pequeno “de” e os seus telhados pequenos sinos a maior parte das vezes oscilando. Elas vêm à missa de carruagem, mas não temos por elas grande consideração, depois que uma delas desapareceu da vila deixando contas por pagar e de vários anos, ao padeiro e ao merceeiro.

Não obstante, estas brilhantes conclusões autorizam-me a defender o meu caso, ou não terei razão? Apelo pois para o tribunal eclesiástico: “Senhor Vigário, não é verdade que me haveis prometido um belo vestido ?”

O senhor Vigário vai ceder, mas a senhorita Edith interviu: “Atenção, senhor Vigário, sabeis bem que esses vestidos estão reservados às alunas das Freiras.”

E voltando-se para mim, disse com uma desdenhosa doçura: “Tu já não vais mais à Escola das Freiras, não é verdade, minha pequena ?” Impossível negar. Baixei os olhos. O senhor Vigário também os baixou, pois compreendeu que uma querela escolar estava e vias de cair sobre a minha inocente cabeça. Por isso, exortou-me a usar aquilo que ele chamou o lindo vestido de Sanae Bemadete. Eu, nem ameacei começar a chorar, porque já me encontrava para além das lágrimas.

Chegou, por fim, o momento de partir. Colocaram-nos, por ordem, na fila. O nosso lamentável grupo é um dos últimos. Assisti à partida das Santas Inocentes, seguidas de um São João-Batista miniatura envolvido numa pele de carneiro e com um traje em vermelho. O público presente considera que ele está de se comer.

Mas, o que eu penso de verdade é que o admirariam de qualquer maneira, mesmo que ele não fosse filho de notário. Ele precede, como é devido, um pequeno Jesus carregando sabiamente a sua cruz, que é um primo seu, ainda de melhor família que a dele (não é a sua mãe, filha de um ministro?). Logo a seguir, pude ver as suas três irmãs mais velhas, vestidas de cetim rosa e munidas de asas com sinais de neve. Destino sumptuoso que não invejo, porque me ultrapassa. Para aspirar a tanto, era preciso ganhar alguns centímetros em altura e muito mais na escala social.

Ah! Eis agora as Santas Mulheres e, sobre uma delas, o vestido lilás que materializa as minhas esperanças furadas. Fui tomada pela revolta. Será que é falta minha ter deixado a escola das Freiras em Setembro passado ? Não será mais culpa da minha professora que se opôs à minha entrada na secção primária, com o pretexto de que me achava um pouco simplória? A minha mãe não gostou do comentário, razão porque disse: Simplória, Irmã, uma criança que aos quatro anos e meio, conhecia de trás para a frente o seu primeiro livro de leitura? Ah! Vamos ver se a vão achar simplória na Escola Média do Estado. Vou inscrevê-la e é já.”

Assim se fez e, desde o Natal, sou a melhor aluna da turma, apesar da minha simplicidade de espírito. Logo que tal soube a Madre Superiora, mandou a nossa casa, como seu delegado, ao senhor Vigário Derval para me recuperar para a sua santa casa. Mas a minha querida mamã, ferida no seu orgulho, manteve-se inflexível. E aproveito para vos lembrar que o senhor Vigário Derval não era um qualquer. Tinha conseguido o seu diploma de engenheiro e gozou a vida bem gozada antes de entrar no seminário, aos trinta anos. E se ele era sedutor! Em resumo, um composto de Santo Agostinho e de Rudolfo Valentino. Mas estava escrito que eu me tornaria num produto do ensino oficial.

Normalmente, sinto-me orgulhosa da nossa escola ser considerada a melhor da região. Mas nem sempre, sobretudo quando verifico cruelmente que os primeiros na terra serão os últimos no reino de Deus. Nessas alturas, ando de cabeça baixa, pisando com indiferença as pétalas vermelhas e brancas que pavimentam o chão, entregue a pensamentos muito pouco cristãos e cometendo seguramente muitos pecados mortais antes de ter idade para isso: a inveja, a cólera e mesmo a dúvida … sim, a dúvida. Aonde a minha conduta exemplar desta semana e os meus sacrifícios ? Nada pareceu ter convencido o Céu dos meus méritos, a julgar pelo que me está a acontecer esta manhã. Ou será que Deus terá também os seus momentos de distracção ? Miséricordia meu Deus, pela minha blasfémia, justamente no momento em que passamos diante da Loja. Sim, porque na nossa vila, a par com as grandes famílias, as boas famílias e os pobrezinhos, há também os Franco-Maçons. Deus permitiu isto e, na sua infinita bondade, deixa-os viver e mesmo prosperar algum tempo antes de os mandar para o fogo etemo. Eles reunem-se nesta rua, ao fundo de um jardim cercado de muros sombrios, fechados por duas portes sinistras e eu não duvidaria muito se me dissessem que uma delas levava directamente ao inferno. Está estabelecido que o inferno tem duas portas, como o próprio Jesus disse. Então, pergunto-me, se elas não se encontrarão aqui ?

Em todo caso, nunca me aventuro nestes locais sem me benzer uma boa meia dúzia de vezes. É possível que se passem na casa desta gente coisas terríficas e que o Diabo tenha ali o seu lugar. É talvez ele que faz levantar-se um vento violento, escurecer o horizonte e ribombar a trovoada. O cortejo encaminha-se para o altar montado na Grande Praça. É lá, que o senhor Cura, vestido de brocado, apresenta o Santíssimo Sacramento à multidão. Sob o baldaquino triunfal que o cobre, a custódia de ouro e de prata sobe lentamente por cima das cabeças recolhidas, ao mesmo tempo que soam por todo o lado as trombetas. Majestosa harmonia de cores e de sons: é exactamente assim que eu aprecio a religião. E logo de seguida a procissão parte em passo de carga de infantaria para a igreja. No adro, o mendigo de sempre, com os olhos todos vermelhos, vai rezando Avé Marias. Se lhe damos vinte e cinco cêntimos, ele prevê o estado do tempo e não se engana mais do que o Observatório.

Vejamos, a minha túnica violeta quase que se rasga, tão esticada está pelo corpo plebeu de Leopoldina, a filha do carniceiro. Evidentemente, ela frequenta a escola das Freiras. E o seu pai envia todos os meses uma grande quantidade de toucinho à madre superiora. E ainda por cima, a sua mãe exerce uma profissão particularmente piedosa : é uma «fazedora de anjos». Evidentemente que isto são verdadeiros títulos para a consideração da Igreja. Não importa que esta gorda represente mal quem deve. Que se lixe, abafemos os nossos desgostos. Mais tarde, quando eu for uma senhora, juro que hei-de oferecer a mim mesma uma orgia de vestidos malvas.

Infelizmente, quando esse tempo chegar, esta cor terá justamente passado de moda, o que quer dizer que eu não curarei nunca esta minha nostalgia, pelo menos nesta vida. É por isso que é preciso que exista em qualquer parte um canto de paraíso, onde eu possa ir na minha hora, vestindo para a eternidade um vestido lilás, macio como uma alvorada de Junho, sob um véu de cândida seda bordada a ouro.

(Tradução de Carlos Vieira Reis)

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